Deus criou o homem. O homem criou a máquina.
O homem matou Deus. A máquina matou o homem.
José
Claudio Matos
2012
Este
aforismo é falso, como a maioria das frases de efeito o são. Mas como não se
impressionar com a simetria destes conceitos? Como não aderir à correnteza que
nos leva da primeira para a segunda e a partir daí até o fim deste conjunto de
proposições? Em sentido literal, seria difícil realizar uma interpretação
viável deste texto, mas em sentido figurado ele constitui muito bem uma
ilustração da história da humanidade.
Primeiro o
seu surgimento misterioso, contingente, quase caprichoso. Um surgimento tão improvável
que só pode ser aceito por muitos – pela maioria – se for atribuído ao
propósito de um criador consciente. Se conceber um desígnio pessoal serve de
consolo e conforto diante do mistério de nossa origem, por que parar por aí?
Atribua-se, logo de uma vez, benevolência e sabedoria infinita, poder,
eternidade e providência particular.
Segundo, o
crescimento do poder humano sobre a natureza por meio da técnica, do trabalho,
da formação da sociedade e da transmissão cultural. O mundo humano é o mundo dos
artefatos, não o mundo natural de onde o humano um dia, lá no passado remoto,
emergiu. O artefato, a matéria arrumada, transformada, dominada pelo engenho
humano serve ao homem. O homem cria para desfrutar. Só depois da máquina é que
o homem teve mesmo razão de se congratular da ideia conhecida por todos segundo
a qual é “imagem e semelhança de Deus”. Mas antes de passar ao terceiro
versinho, lembre-se o leitor de que muitas máquinas foram armas: ou foram
pensadas como armas desde sua concepção, ou se tornaram armas com o
desenvolvimento de seu uso. Em nós, criar e matar ocorrem juntos vezes demais
na história.
Em terceiro
lugar a declaração que nos faz lembrar Nietzsche. O homem desenvolve
explicações, desenvolve tecnologias, e além de desvendar os mistérios onde
habitava antes o sagrado o homem explora, converte. A natureza se revela ao
homem como um cenário acessível e esclarecido. E as normas de conduta, as
regras e interdições dão lugar a uma ordem racional, progressiva, inteligível.
Matar Deus significa abrir - com a racionalidade transmitida e acumulada - um
mundo onde o sagrado e o misterioso não têm mais lugar. No pouquinho daquela
sombra imemorial, no resto de mundo ainda sem explicação, talvez nem caiba mais
um Deus inteiro. Se Deus não pode mais se esconder e nem se revelar, deve ter
morrido ou ido embora. Obra do homem.
Em quarto,
o humor poético da desgraça humana. O mundo dos artefatos, o mundo da
tecnologia, o mundo da máquina foi criado pelo
homem. Mas não foi criado para o
homem. Este mundo não é para o homem, é para a máquina. A máquina veio
acompanhando o homem, incerta, desajeitada, mas foi passando por aprimoramentos
ao longo de milhares de gerações, lá desde a primeira ferramenta de pedra. E
nem se pode dizer que tenha sido submetida à pressão seletiva do meio ambiente,
como ocorre com os seres vivos. Por que, no caso da máquina, o homem a esteve
protegendo em todo o seu percurso evolutivo. O homem foi Deus para a máquina,
ouviu sua prece, guiou sua jornada, levou-a para a glória. Agora a máquina
raciocina, planeja, delibera, entende. A máquina está crescendo. A máquina
desta geração indica o horizonte e as condições de crescimento e
desenvolvimento da máquina da geração seguinte. E o homem, seu Deus, cria
segundo esta indicação. A máquina roga, o homem atende.
Este é o
caminho da ruína do homem no mundo. Neste mundo Deus foi dando lugar ao homem,
e neste mundo Deus morreu; assim o homem está dando lugar à máquina, até que o
homem morra. Todo o resto que há para dizer não passa de repetição, a não ser
uma pergunta, a última pergunta que será feita pelo último homem, se ele for
capaz de formulá-la: O que a máquina criará?
Mas antes
de olhar para esta pergunta, e se encaminhar ao devaneio ou à mais rigorosa
inferência preditiva, algumas notas ao que acima foi dito podem nos ajudar a
entender melhor o problema, ou pelo menos entreter o pensamento um pouco mais.
Vejamos:
1.
O conceito de “máquina” requer explicação. Para montar
esta argumentação tem sido conveniente pensar em “homem” e “máquina” como
entidades distintas, intrinsecamente, por seu modo de ser. Esta distinção é
costumeira em nossos hábitos de pensamento e decorre da distinção mais
primordial entre seres naturais e seres artificiais. Ou entre seres orgânicos e
seres mecânicos. A concepção é tão forte que recebe a vestimenta da distinção
misteriosa entre seres vivos e seres inanimados. Como se o que é vivo possuísse
uma anima, ausente no que não é vivo.
Mas este modo de pensar está sujeito a enormes controvérsias. Se alguém for
discutir em detalhes qual a característica especial da vida, e mesmo da vida
inteligente, pode se aproximar de um território fronteiriço onde animal e
máquina são semelhantes a um ponto irritante. Irritante porque desvanece a
linha que separa os dois domínios de nossa costumeira distinção. O homem é máquina. A máquina vive. O que as
ciências, a tecnologia, a filosofia, e principalmente a literatura têm
apresentado é uma visão de que as condições em que um ser organizado pode ser
considerado vivo podem, em princípio pelo menos, ser preenchidas por uma
máquina, se ela manifestar suficiente complexidade. Assim, a história narrada
no aforismo inicial trata de um único mundo, um mundo de entidades que fazem
uso dos recursos do meio para copiarem a si mesmas. Primeiro por processos
simplíssimos de recolher e reter partes dos materiais disponíveis, e finalmente
por processos complexos que envolvem tratamento cada vez mais sofisticado da
informação.
Assim, a máquina não é antagônica ao homem, a máquina não é
infensa ao homem. A máquina é a herdeira do homem, é sua descendente no
processo de transformação do mundo, por meio da organização da matéria em seu
constante movimento. Um mundo povoado pelos descendentes remotos das atuais
máquinas que nos servem deve ser considerado continuidade, e não ruptura, do
curso de nossa história até aqui. Não seria uma história da derrota da vida sob
a força perversa da tecnologia inanimada. Seria a história da evolução de novas
e inesperadas formas de vida, a partir de formas de vida mais primitivas. Seria
a história da substituição de um tipo de suporte, ou de veículo, para outro
tipo de suporte, ou de veículo. De um mundo de aminoácidos para um mundo de
semicondutores. De um mundo de reações químicas para um mundo de impulsos
elétricos.
2.
Se Deus criou o homem como nas narrativas dos livros
religiosos, Deus tinha um plano. Supostamente este plano não consistia em
permitir que o mundo fosse entregue posteriormente ao domínio das máquinas. Mas
esta discussão conduz a questionar a divindade e seu desígnio. E este
questionamento poderia nos levar a duas respostas muito controversas: Quem
criou o homem não foi Deus, e o homem teve outro tipo de origem. Que Deus não é
Deus, ou seja, que a palavra Deus
representa apenas um produto imaginário da cultura humana, e não uma entidade
real, onipotente, onisciente e eterna. Estas respostas encontram, ambas, grande
evidência no conhecimento científico, mas apenas se for entendido de certa
maneira: pois a ciência é um estudo específico e a cosmologia é um assunto
geral. De qualquer maneira, os processos naturais de evolução e desenvolvimento
das coisas complexas são processos que funcionam bem sem exigir interferência
externa. O mundo pode muito bem funcionar segundo suas regularidades sem ser
constantemente retocado pelo desígnio intencional de um Deus. Seu plano poderia
estar traçado desde o começo. E tudo culminando para um mundo cheio de máquinas
submetendo a vontade humana.
3.
Sobre se o homem matou Deus. Claro que esta é uma
figura e não uma afirmação literal. Pode significar que Deus morreu como causa,
como explicação, como origem do mundo e de seus fenômenos. Por sua vez, o homem
explica o mundo e seu funcionamento, cada vez mais, de outras maneiras. E pode
significar que a religião não rege mais a conduta e os valores do homem. Ao
invés disso a religião vem se tornando um subterfúgio para o homem justificar
publicamente suas verdadeiras motivações, principalmente a conquista e o
exercício do poder. O homem matou Deus ao assumir ele mesmo o controle das forças
da natureza, por meio da ciência e da técnica. Matou Deus ao desmistificar as
regularidades cósmicas por meio de princípios gerais e raciocínio experimental.
Matou Deus ao estabelecer nesta própria vida material os objetivos e valores
que dão significado à vida. Perseguiu Deus em seu refúgio no mistério e no
transcendente, e ali pôs fim a sua existência.
Como
preservar o mundo humano, como impor a intencionalidade humana sobre a intencionalidade
impessoal da máquina sem ressuscitar Deus? Pergunta-se isso já que é preciso
assumir que a ciência e o pensamento experimental representam ou um avanço ou
um retrocesso. Se eles representam um avanço, então matar Deus é desejável,
tanto como é indesejável ser morto pela máquina. O homem mata Deus tendo como arma
o pensamento, e depois precisa arrumar uma maneira de não ser morto pelo
produto deste mesmo pensamento. Se eles – ciência e pensamento experimental -
representam um retrocesso, seria desejável retornar ao mistério. O pensamento
experimental e os valores terrenos podem ser já uma artimanha da máquina; se
forem, são inimigos do homem. E se a segurança e saúde do homem não estão ali,
onde a segurança e a saúde do homem estão? É preciso confiar - mais ainda - é
preciso apostar na opção pela ciência e pelo pensamento experimental. É preciso
escapar do dilema entre a máquina e Deus, posicionando-se a favor da livre
investigação e do debate, a favor da educação e da crítica.
Neste
momento decisivo na história dos seres organizados, é imprescindível como nunca
empregar nossa energia em favor dos métodos científicos. O resultado esperado
compensa o risco. E para concluir esta reflexão não custa mencionar o risco
envolvido nesta aposta na ciência: É o risco de que ela, juntamente com as
principais versões do pensamento experimental seja, ao ser defendida e adotada,
objeto de uma devoção e de uma fé semelhante àquela outrora dirigida ao Deus
que recentemente matamos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário