terça-feira, 30 de outubro de 2018


Deus criou o homem. O homem criou a máquina. O homem matou Deus. A máquina matou o homem.


José Claudio Matos
2012

Este aforismo é falso, como a maioria das frases de efeito o são. Mas como não se impressionar com a simetria destes conceitos? Como não aderir à correnteza que nos leva da primeira para a segunda e a partir daí até o fim deste conjunto de proposições? Em sentido literal, seria difícil realizar uma interpretação viável deste texto, mas em sentido figurado ele constitui muito bem uma ilustração da história da humanidade.
Primeiro o seu surgimento misterioso, contingente, quase caprichoso. Um surgimento tão improvável que só pode ser aceito por muitos – pela maioria – se for atribuído ao propósito de um criador consciente. Se conceber um desígnio pessoal serve de consolo e conforto diante do mistério de nossa origem, por que parar por aí? Atribua-se, logo de uma vez, benevolência e sabedoria infinita, poder, eternidade e providência particular.
Segundo, o crescimento do poder humano sobre a natureza por meio da técnica, do trabalho, da formação da sociedade e da transmissão cultural. O mundo humano é o mundo dos artefatos, não o mundo natural de onde o humano um dia, lá no passado remoto, emergiu. O artefato, a matéria arrumada, transformada, dominada pelo engenho humano serve ao homem. O homem cria para desfrutar. Só depois da máquina é que o homem teve mesmo razão de se congratular da ideia conhecida por todos segundo a qual é “imagem e semelhança de Deus”. Mas antes de passar ao terceiro versinho, lembre-se o leitor de que muitas máquinas foram armas: ou foram pensadas como armas desde sua concepção, ou se tornaram armas com o desenvolvimento de seu uso. Em nós, criar e matar ocorrem juntos vezes demais na história.
Em terceiro lugar a declaração que nos faz lembrar Nietzsche. O homem desenvolve explicações, desenvolve tecnologias, e além de desvendar os mistérios onde habitava antes o sagrado o homem explora, converte. A natureza se revela ao homem como um cenário acessível e esclarecido. E as normas de conduta, as regras e interdições dão lugar a uma ordem racional, progressiva, inteligível. Matar Deus significa abrir - com a racionalidade transmitida e acumulada - um mundo onde o sagrado e o misterioso não têm mais lugar. No pouquinho daquela sombra imemorial, no resto de mundo ainda sem explicação, talvez nem caiba mais um Deus inteiro. Se Deus não pode mais se esconder e nem se revelar, deve ter morrido ou ido embora. Obra do homem.
Em quarto, o humor poético da desgraça humana. O mundo dos artefatos, o mundo da tecnologia, o mundo da máquina foi criado pelo homem. Mas não foi criado para o homem. Este mundo não é para o homem, é para a máquina. A máquina veio acompanhando o homem, incerta, desajeitada, mas foi passando por aprimoramentos ao longo de milhares de gerações, lá desde a primeira ferramenta de pedra. E nem se pode dizer que tenha sido submetida à pressão seletiva do meio ambiente, como ocorre com os seres vivos. Por que, no caso da máquina, o homem a esteve protegendo em todo o seu percurso evolutivo. O homem foi Deus para a máquina, ouviu sua prece, guiou sua jornada, levou-a para a glória. Agora a máquina raciocina, planeja, delibera, entende. A máquina está crescendo. A máquina desta geração indica o horizonte e as condições de crescimento e desenvolvimento da máquina da geração seguinte. E o homem, seu Deus, cria segundo esta indicação. A máquina roga, o homem atende.
Este é o caminho da ruína do homem no mundo. Neste mundo Deus foi dando lugar ao homem, e neste mundo Deus morreu; assim o homem está dando lugar à máquina, até que o homem morra. Todo o resto que há para dizer não passa de repetição, a não ser uma pergunta, a última pergunta que será feita pelo último homem, se ele for capaz de formulá-la: O que a máquina criará?
Mas antes de olhar para esta pergunta, e se encaminhar ao devaneio ou à mais rigorosa inferência preditiva, algumas notas ao que acima foi dito podem nos ajudar a entender melhor o problema, ou pelo menos entreter o pensamento um pouco mais. Vejamos:
1. O conceito de “máquina” requer explicação. Para montar esta argumentação tem sido conveniente pensar em “homem” e “máquina” como entidades distintas, intrinsecamente, por seu modo de ser. Esta distinção é costumeira em nossos hábitos de pensamento e decorre da distinção mais primordial entre seres naturais e seres artificiais. Ou entre seres orgânicos e seres mecânicos. A concepção é tão forte que recebe a vestimenta da distinção misteriosa entre seres vivos e seres inanimados. Como se o que é vivo possuísse uma anima, ausente no que não é vivo. Mas este modo de pensar está sujeito a enormes controvérsias. Se alguém for discutir em detalhes qual a característica especial da vida, e mesmo da vida inteligente, pode se aproximar de um território fronteiriço onde animal e máquina são semelhantes a um ponto irritante. Irritante porque desvanece a linha que separa os dois domínios de nossa costumeira distinção. O homem é máquina. A máquina vive. O que as ciências, a tecnologia, a filosofia, e principalmente a literatura têm apresentado é uma visão de que as condições em que um ser organizado pode ser considerado vivo podem, em princípio pelo menos, ser preenchidas por uma máquina, se ela manifestar suficiente complexidade. Assim, a história narrada no aforismo inicial trata de um único mundo, um mundo de entidades que fazem uso dos recursos do meio para copiarem a si mesmas. Primeiro por processos simplíssimos de recolher e reter partes dos materiais disponíveis, e finalmente por processos complexos que envolvem tratamento cada vez mais sofisticado da informação.
Assim, a máquina não é antagônica ao homem, a máquina não é infensa ao homem. A máquina é a herdeira do homem, é sua descendente no processo de transformação do mundo, por meio da organização da matéria em seu constante movimento. Um mundo povoado pelos descendentes remotos das atuais máquinas que nos servem deve ser considerado continuidade, e não ruptura, do curso de nossa história até aqui. Não seria uma história da derrota da vida sob a força perversa da tecnologia inanimada. Seria a história da evolução de novas e inesperadas formas de vida, a partir de formas de vida mais primitivas. Seria a história da substituição de um tipo de suporte, ou de veículo, para outro tipo de suporte, ou de veículo. De um mundo de aminoácidos para um mundo de semicondutores. De um mundo de reações químicas para um mundo de impulsos elétricos.
2. Se Deus criou o homem como nas narrativas dos livros religiosos, Deus tinha um plano. Supostamente este plano não consistia em permitir que o mundo fosse entregue posteriormente ao domínio das máquinas. Mas esta discussão conduz a questionar a divindade e seu desígnio. E este questionamento poderia nos levar a duas respostas muito controversas: Quem criou o homem não foi Deus, e o homem teve outro tipo de origem. Que Deus não é Deus, ou seja, que a palavra Deus representa apenas um produto imaginário da cultura humana, e não uma entidade real, onipotente, onisciente e eterna. Estas respostas encontram, ambas, grande evidência no conhecimento científico, mas apenas se for entendido de certa maneira: pois a ciência é um estudo específico e a cosmologia é um assunto geral. De qualquer maneira, os processos naturais de evolução e desenvolvimento das coisas complexas são processos que funcionam bem sem exigir interferência externa. O mundo pode muito bem funcionar segundo suas regularidades sem ser constantemente retocado pelo desígnio intencional de um Deus. Seu plano poderia estar traçado desde o começo. E tudo culminando para um mundo cheio de máquinas submetendo a vontade humana. 
3. Sobre se o homem matou Deus. Claro que esta é uma figura e não uma afirmação literal. Pode significar que Deus morreu como causa, como explicação, como origem do mundo e de seus fenômenos. Por sua vez, o homem explica o mundo e seu funcionamento, cada vez mais, de outras maneiras. E pode significar que a religião não rege mais a conduta e os valores do homem. Ao invés disso a religião vem se tornando um subterfúgio para o homem justificar publicamente suas verdadeiras motivações, principalmente a conquista e o exercício do poder. O homem matou Deus ao assumir ele mesmo o controle das forças da natureza, por meio da ciência e da técnica. Matou Deus ao desmistificar as regularidades cósmicas por meio de princípios gerais e raciocínio experimental. Matou Deus ao estabelecer nesta própria vida material os objetivos e valores que dão significado à vida. Perseguiu Deus em seu refúgio no mistério e no transcendente, e ali pôs fim a sua existência.
Como preservar o mundo humano, como impor a intencionalidade humana sobre a intencionalidade impessoal da máquina sem ressuscitar Deus? Pergunta-se isso já que é preciso assumir que a ciência e o pensamento experimental representam ou um avanço ou um retrocesso. Se eles representam um avanço, então matar Deus é desejável, tanto como é indesejável ser morto pela máquina. O homem mata Deus tendo como arma o pensamento, e depois precisa arrumar uma maneira de não ser morto pelo produto deste mesmo pensamento. Se eles – ciência e pensamento experimental - representam um retrocesso, seria desejável retornar ao mistério. O pensamento experimental e os valores terrenos podem ser já uma artimanha da máquina; se forem, são inimigos do homem. E se a segurança e saúde do homem não estão ali, onde a segurança e a saúde do homem estão? É preciso confiar - mais ainda - é preciso apostar na opção pela ciência e pelo pensamento experimental. É preciso escapar do dilema entre a máquina e Deus, posicionando-se a favor da livre investigação e do debate, a favor da educação e da crítica.
Neste momento decisivo na história dos seres organizados, é imprescindível como nunca empregar nossa energia em favor dos métodos científicos. O resultado esperado compensa o risco. E para concluir esta reflexão não custa mencionar o risco envolvido nesta aposta na ciência: É o risco de que ela, juntamente com as principais versões do pensamento experimental seja, ao ser defendida e adotada, objeto de uma devoção e de uma fé semelhante àquela outrora dirigida ao Deus que recentemente matamos.


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